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O desporto à margem do Direito

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Publicado originalmente na Tribuna do Advogado, Rio de Janeiro, jul 2008, p. 6.

“Certas condenações disciplinares violam rudimentares garantias processuais, como nas punições por doping, em que atletas são severamente punidos simplesmente pela detecção, em seus organismos, de substâncias que são vedadas por uma determinada organização desportiva”.

O desporto, ao longo dos anos, vem se transformando numa ilha. Uma ilha que se isola de um continente de acontecimentos violentos, desumanos e de tantas outras enfermidades sociais que assolam o nosso noticiário cotidiano.

Uma ilha em que se respiram ares da boa aventurança: seus praticantes são quase super-homens; seus valores corporificam os esplendores da solidariedade, do fair-play e do ideal de vitórias. Sentimentos de união nacional afloram durante competições internacionais: hinos são cantados a plenos pulmões e bandeiras são orgulhosamente agitadas em nome da pátria.

Mas o desporto organizado isolou-se também da realidade social sob outro aspecto: apartou-se consideravelmente do continente jurídico do Estado.

Capitaneado por entidades como a Federação Internacional de Futebol Associado (Fifa) e o Comitê Olímpico Internacional (COI), ele teve sua regulação nascida no seio associativo, alheio às ingerências dos estados, dando azo inclusive a quem dissesse que o direito penal deveria deter-se diante dos muros de uma arena desportiva.

Talvez essa breve contextualização histórica e ideológica sirva para entendermos (sem, contudo, deixarmos de condenar) certas situações de clara violação a direitos fundamentais do homem, que estranhamente passam despercebidas de muitos juristas de hoje.

A começar pela cláusula de estilo encontrada nos estatutos das entidades desportivas dirigentes, que veda aos seus filiados o recurso ao Judiciário, o que vem sendo acatado por todos sem maiores queixumes, pois cada modalidade desenvolve-se austeramente sob regime de monopólio, liderado mundialmente por uma federação internacional, que avoca o poder de ditar regras sobre todos os assuntos.

Por outro lado, certas condenações disciplinares violam rudimentares garantias processuais, como nas punições por doping, em que atletas são severamente punidos simplesmente pela detecção, em seus organismos, de substâncias que são vedadas por uma determinada organização desportiva.

Tal proceder traduz-se em genuína responsabilização objetiva, maculando, na prática, o sagrado direito da ampla defesa, já que este reside precisamente na prerrogativa do acusado de provar a sua inocência.

No mesmo sentido, prevêem-se penas eternas no esporte, contraditoriamente à filosofia penal do próprio Estado e que são aplicadas com rigor aos profissionais do ramo, eliminando-os para sempre de sua atividade laboral, em detrimento da garantia constitucional que assegura o livre exercício de profissão.

Mas esse isolamento do desporto do cenário jurídico é também movido pela precária regulação e fiscalização empreendida pelo Poder Público.

Cite-se, por exemplo, a profissão de agente de jogadores de futebol, devidamente institucionalizada pela Fifa, em que a ausência de regulamentação estatal criou ambiente propício para a entrada de alguns profissionais inescrupulosos, que se tornaram, na prática, autênticos mercadores de seres humanos, relembrando sombrios momentos de nossa história colonial.

Acrescente-se a figura do contrato de patrocínio, essencial para o desenvolvimento da atividade desportiva, que ainda perece no porão da atipicidade, encorajando patrocinadores a rescindir unilateralmente ajustes, por suposta violação do patrocinado à cláusula contratual genérica que exige do financiado uma “conduta socialmente adequada”.

Tal proceder abre a porta para o cometimento de atos discriminatórios, pois deixa ao livre arbítrio de uma das partes avaliar moralmente uma conduta de outrem, além de recriar, sob o manto da simulação, o banido instituto da condição potestativa pura.

Por outro lado, o Estado não raro intervém açodadamente, criando ilhas de ilegalidades, como comumente vê-se nas competições, em que o policiamento atua sob as ordens de um árbitro, como se preposto seu fosse, chegando a usar da força física para constranger profissionais a cumprir regras meramente desportivas.

Faz-se necessário, portanto, que se construa uma ponte entre o desporto e o direito, permitindo, simultaneamente, que a sociedade evolua conforme os valores apregoados pelo desporto e que o desporto se desenvolva dentro dos limites fixados pelo ordenamento jurídico estatal.